domingo, 20 de maio de 2012

Cena de Família


Escrevi esse texto depois de uma viagem e o guardei. Às vezes, quando o releio, gosto de rever essa cena que se imortalizou em minha memória como um retrato cotidiano de uma família e, especialmente, de um pai em sua função e importância na vida de uma criança. Simples e essencial! É uma mostra da significância de um núcleo familiar, em momentos triviais da existência, mas bastante representativos de sua grandeza e importância. Família sempre me emocionou. Encontros de pais e filhos, esses laços eternos,


Cena de Família


Com um grupo de excursão, entrei nos últimos minutos da hora no TGV, em Paris, a caminho de Grenoble. 

Nosso grupo optou pela classe econômica e de fumantes, o que mais tarde foi motivo de contrariedade pelo ar desagradável de cigarro na ala.

Já acomodada em meu assento, me chamou atenção uma criança, de quatro ou cinco anos, que chorava e gritava por seu “papá”. Estava com a mãe e um irmão. O que acontecia? Será que o pai não iria viajar com eles? A mulher, uma jovem afro, de cabelos em tranças miudinhas, mostrava-se simples, bem cuidada e vaidosa. Tentava falar com o pequeno que chorava, mas ele se mostrava apavorado e chamava insistentemente pelo pai. 

Fiquei preocupada com a angústia daquela criança e com a mãe que tentava controlar a situação, porém, logo depois o pai apareceu no corredor para alívio da criança e meu também. O menino, assim que viu o pai, se calou e sua expressão era de alívio e de felicidade. 

Era um homem claro, por volta de seus 40 anos, um francês. Trazia nas mãos um pão para as crianças. Partiu-o em dois e deu a cada um a sua parte. As crianças agradeceram ao pai com um sonoro “merci, papá”: uma cena representativamente significativa. 

Fiquei pensando na importância do pai na vida daquela criança. Bastou a sua presença para que o menino se mostrasse seguro e parasse de chorar Além do mais, aquela cena de aparente simplicidade, com mostras de educação, era simpática de se ver. 

O pai pegou um jornal e começou a ler, a mãe aconchegou-se recostando sua cabeça nos ombros do companheiro e fechou os olhos, mostrando-se segura ali, naquele espaço do corpo de seu marido. As crianças comiam cada um a sua metade de pão, silenciosas. As mãos do pai eram calejadas, o que me fez supor que era um trabalhador braçal, talvez um pintor. Suas roupas estavam um pouco rotas e tinham uns respingos de tinta clara.  

Fechei os olhos para cochilar e logo os abri porque o menino menor chorava outra vez. O pai havia saído e os olhinhos daquela criança pareciam aflitos demais. A mãe tentava acalmar o filho, dizendo-lhe alguma coisa, mas ele só se tranquilizou ao ver o pai apontando no corredor do trem novamente. 

Agora trazia uma latinha de coca-cola e outra de cerveja. Abriu o refrigerante e dividiu-o com as crianças. Como só havia um copo, ele serviu ao filho mais velho, que estava em frente a ele na mesinha, que separava os assentos dos pais de um lado e dos filhos de outro. O pequeno observava o irmão sorvendo o refrigerante e esperava por sua vez de compartilhar. Os filhos ficaram ali se entretendo com a degustação da bebida, concentrados no que faziam, o pai lia o jornal e a mãe cochilava no ombro do companheiro. De vez em quando as crianças perguntavam alguma coisa ao pai, mas ele estava absorto no que lia, às vezes respondia baixo, brevemente e voltava a ler. 

Eram humildes, pensei, e havia uma dignidade ali naquela aparente simplicidade. A dignidade estava nos ensinamentos que aquele pai transmitia nas suas atitudes. Na sua aparente simplicidade, educava seus filhos, ensinando-os a dividir, falando baixo, ensinando o agradecimento. A dignidade estava na possibilidade do pão, da leitura, da educação, da mistura harmoniosa de raças, de poderem viajar juntos. 

As crianças falavam o tempo todo, um conversando com o outro. Às vezes parecia que se desentendiam, mas o pai não intrometia. Elas estavam começando a se irritar, talvez se cansando de ficar sentadas. O pai, então, retirou de sua sacola de pano dois livrinhos para colorir, com uma caixa de lápis de cor e deu-os aos filhos. Cada um abriu seu livrinho na mesinha em frente aos pais e dividiram os lápis de cor. O pai lhes orientou para que não colorissem fora dos limites e eles passaram a colorir a gravura compenetradamente, com cuidado para não ultrapassarem os contornos da gravura. 

Observando aquela família, eu pensei em todas as famílias do mundo e desejei que elas tivessem aquela estrutura que eu lia ali. 

Nas atitudes daquele pai, ele ensinava a humildade, a educação, o limite, a divisão e o amor do cuidado com o outro. Tudo parecia simples e essencial. 


Dulce Braz - Paris 2001 


 

Um comentário:

  1. As coisas são o que são. Mas também são produtos do olhar de cada um. Gosto do olhar de Dulce Braz. Gosto de olhar com o olhar dela. Parabéns por este texto tão sensível. Sensível é o seu olhar, Dulce.

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