sexta-feira, 6 de julho de 2012

Um recado para Milla


Relato aqui um sonho com uma companheira de curso. Ela me confidenciava uma decisão muito triste. O sonho foi bastante consistente e as imagens me trouxeram muita comoção. Tenho que dizer que não há palavras suficientes para representar o vivenciado: as cores, a luz e a emoção sentida. Mas minha surpresa maior foi que, ao relatar à minha colega a situação onírica, ela me confirmou ser verdade o que me contou em sonho...




Encontrei-me com Milla, em um sonho. Ela me olhou, amargurada, e me confidenciou uma resolução: “não quero mais viver! Chega, estou decidida!”

Fiquei atordoada, mas me lembro de buscar, racionalmente, palavras para argumentar, questionar... Porém, percebendo a seriedade da sua afirmativa,  me calei. Não havia palavras eficientes que pudessem ser ditas naquele momento. Minha resposta foi um abraço acolhedor, no silêncio da tarde que escurecia...

De repente, o escuro vespertino se fez de forma inusitada e abriu-se no céu uma cor arroxeada, atraindo nosso olhar para o alto. 

Um sol lilás-róseo brilhou no céu azul anil sobre um mar revolto. Suas ondas formavam luzes intensas recheadas de palavras que iam se sobressaindo das ondas, quase invisíveis por tanta luz...

As ondas se quebravam espumando essas palavras em tamanha luz que nossos olhos não captavam o seu significado e a mensagem se dissolvia nas águas...

Num relance, meus olhos conseguiram captar duas de muitas palavras a se espumarem em luz no quebrar das ondas:
AMOR... LUZ... AMOR... LUZ... AMOR... LUZ...!

A cena era tão grandiosa que minhas pernas cederam ao peso da emoção e caí de joelhos, reverenciando o poder da natureza que nos comunicava o amor e nos revelava a grandeza da espiritualidade diante da nossa impotência.

Ajoelhada ali em frente à cena, fiquei abraçada a Milla... Era um recado tão grandioso que dispensava explicações...

Era uma mostra da existência de Deus, não um Deus-homem, mas um Deus-poder impregnado no cosmo, a nos revelar uma ordem de amor e superioridade, de inteligência e presença... Tremia de emoção intensa e o choro veio em abundância de meu corpo!

Nesse momento, fomos puxadas da cena por um poder invisível, como se fosse um fio... e passamos por um corredor de pessoas necessitadas, uma cena de dor e revelação: Aqueles seres eram um retrato de miséria da condição humana no sofrimento.

Passamos por esse corredor de pessoas famintas de acolhimento, como se fôssemos puxadas de volta à vida. Como se tivéssemos ido a um plano espiritual juntas, tivéssemos o momento de revelação do poder de Deus, da existência, de um recado a minha companheira sobre a sua resolução e fôssemos trazidas de volta à realidade da dureza da humanidade, olhando-a e percebendo-a na sua extensão e  dor...

Acordei chorando muito, sentindo uma dor intensa no peito, como se tivesse absorvido a dor daquelas pessoas na sua existência, como se estivesse a morrer... Um sonho poderoso, grandioso, eu sei. Senti...! E essa percepção refletia-se em meu peito assustado a doer...

Durante alguns dias, relutei em contar à minha amiga o sonho que tivera com ela, pois como eu iria dizer da sua determinação em não viver? O que poderia revelar de meus pensamentos sobre ela ou sobre mim que levaram ao sonho?

Quando a conheci, no início da graduação em Psicologia, soube que ela estava se tratando de um câncer. Em um dos momentos dos períodos iniciais do curso, tive uma crise de choro, por saber que minha mãe enfrentava um câncer e, nesse momento, ela se aproximou de mim e me disse para deixar minha mãe com a decisão dela.

Fiquei assustada com a possibilidade da doença ser uma escolha de minha mãe. Fiquei tentando entender a maneira de Milla enxergar a situação, embora estranhasse aquele pronunciamento.

Como eu poderia aceitar a decisão de alguém de morrer? De alguém que eu amo? Hoje sei que Milla falava por si. Ela queria "ir", já no início do curso de Psicologia.

Durante o curso, nem tão próxima fui de Milla, mas tínhamos uma sintonia interessante. Gostava dela; ela me chamava de Dulcinha e tinha sempre uma palavra de elogio para mim ao nos encontrarmos nos diversos momentos do curso como colegas de disciplinas.

Ao vê-la, no final do curso, percebi o quanto ela estava diferente, renovada, o quanto havia crescido nos cinco anos do curso.

Todos crescemos muito durante tantos encontros sobre o humano em suas diversas abordagens da psicologia. Talvez por isso tenha sonhado com ela, pois havia refletido, especialmente, sobre sua mudança aparentemente positiva em um de nossos últimos encontros, antes do sonho.

Encontrando-me com ela na última aula do final do semestre, resolvi lhe contar do sonho que tive com ela. Fiz uma introdução da nossa conversa tentando me justificar pela falta de lógica do sonho, mas também da força dele...

Ao lhe transmitir o que ela me dizia em sonho, percebi que ela ficou transtornada, visivelmente emocionada e, com os olhos marejados, me disse ser verdade o que ouvi dela em sonho.

Ela relatou que havia iniciado o curso com a  decisão de entrega da sua vida, de desistência da luta... Esse pensar fora adiado temporariamente e, agora, no final do curso, ela estava às voltas com essa decisão a lhe atormentar...

Disse-me que as pessoas que vi no sonho são os humanos miseráveis que ela tem encontrado nos lugares de acolhimento de doentes mentais. Ligou-se a essas pessoas e sente a importância do trabalho que tem feito junto a elas...

Estava se despedindo desse trabalho durante a semana e depois de uma conversa com um professor, no dia anterior, resolveu continuar no cuidado com os doentes mentais.

A frase que ouvi dela em sonho é a tradução do seu desejo e faz parte de sua dúvida existencial. Fiquei emocionada quando ela me revelou esse fato e ponderamos se fui um veículo de comunicação a ela...

O sonho era um recado a  Milla! Um poder extraordinário, revelado e sentido em sua presença... Um texto a ser transmitido a ela, naquele momento de briga séria com a vida e seus propósitos... Uma resposta tão intensa que não dá para dizer que significa isso ou aquilo... É simplesmente um recado.

E fui usada para transmitir esse comunicado à minha amiga. Não sei se ela foi capaz de captar a minha emoção vivenciada no sonho, porém pude sentir  seu sofrimento existencial no momento em que lhe relatei o sonho...

Mas também pude lhe dizer de um poder indescritível e belo e de uma mensagem de amor e luz associada à dor da miséria humana  a clamar assistência. 

Essa história está no meu caminho. Olho-a com respeito, pois diz do momento em que questiono o que fazer na estrada que me espera.

Diz da vontade de fazer pelas pessoas, de caminhar uma estrada de forma nova, entendendo a humanidade, sua dor, cumplicidade, esperança, de forma diferente...

Simplesmente porque vejo o humano com um outro olhar depois desse percurso da minha estrada...  um humano  limitado, frágil, mas cheio de possibilidades e de contradições nos encontros com os outros e consigo mesmo.


Dulce Braz.
Obs.: Nesse texto, preservo o nome real de minha colega do curso de Psicologia e o substituo por Milla. A ela amor e carinho em sua caminhada!